29 maio 2011

Registro XXXV

Amo.
E no zumbido oco do meu silêncio
os diminutos retratos de nós,
no tempo e no espaço:
o início infante, os intrépidos ares
de nossa juventude rude e intumescida.
Amo. Vendo que por cada segundo,
sinto uma fresta insistente de luz
brotar em desejo, carinho e cuidado
incontestável e intransferível.
Não se remove o que Deus brota.
Nem se destrói o que Dele cresce.
É planta-vida.

Amo, porque no silêncio em que estás
na tua penumbra, esquecestes que te queres
para te preencher de mim e assim de ti
pois de ti também estou pleno.

Amo, porque mesmo pouco,
o que tudo é, avanço.
Engaste e beleza,
atrito, tributo, cratera e clareira.

26 maio 2011

Registro XXXIV

O tempo desculpou-se
pelo movimento
ininterrupto da vida.
Mas não é o tempo,
é o amor.
Conta-se a vida
por amor.
Viver é passar
em amor os sentidos?

24 maio 2011

Registro XXXIII

Quando duvidas
é quando fermenta o pão
que alimenta.
Quando fincas a bandeira negada
no solo que julgavas seco
é quando brota a umidade secular
das grutas da tua paisagem infinita.

Deixa-me dizer:
mofo, crosta, ferida,
nojo e descoberta.
Larva, líquen,
folha-ossos triturados,
camadas de poeira,
aridez antes da chuva.
Tudo se bole no vazio
quando não percebemos.

22 maio 2011

Registro XXXII

E se eu arasse
tua carne-paisagem
com lâminas afiadas
e jorrasse um leite
escuro e grosso, esverdeado
misturado à terra, pedregulhos,
lascas de folhas secas
e fosse assim o morredouro
de tuas esperanças?

Mesmo assim devastada
com palavras e sentimentos
macerados, a paisagem-carne
torna a ser limpa, calma
e o que sempre foi: paisagem.
É que o vale tem tanta fé dentro dele
que é vale sem saber.
Transcorre sobre sua
própria existência.

Registro XXXI

Das preces que fiz
nenhuma vingou
como eu pedi.
Talvez porque não soube dizer,
ou quem sabe
não era isso que eu queria.
Devia era pedir mais
até descobrir
o que preciso.

19 maio 2011

Registro XXX































 
O que seria o prado habitado por Hilda?
Deus em fatias, verbos porosos.

    • Não vês, não é? Os dias líquidos, os que queimam,
      fazendo a tela de minhas noites?


No prado Hilda responde:
    •  Porque tens amor além de uma certa medida!

O prado chora de Deus. É Bruno que anda,
de nuvem em nuvem colhendo nenúfar.
No prado Hilda regurgita: 

    •  Amor, porque o tens se o odeias além do que o limita?

- Adélia solta o passarinho, pois eu, Bruno, construo
  a paisagem perfeita com minhas levezas.

E no prado Hilda deita:
    • Amém pelos podres, pelos nacos que me entopem.
      Estou viva de doer! Ai Bruno! Traz o nenúfar

      nos dentes! Ai Adélia, que fogo!
      Traz o nenúfar no ventre! Que é como a boca branca,
      aberta, sugando a teta do mundo.

- Bruno, vai buscar saliva, pois Hilda está secando!

E no prado a noite desce. Adélia canta um hino
sobre a urdidura da vida. Bruno retira os olhos
e o nenúfar, numa compaixão só.

- Hilda, toma o sal dos meus olhos, sou eu Bruno,
o que te recebeu no amor escuro e grosso.

    • Quero o verbo poroso, Bruno!

- Sou eu, o que te recebeu no amor escuro e grosso.


    • Onde está a faca?

- O que queres arrancar?

    • Eu mesma, da pedra-musgo. Quero raspar a pedra
      com aponta dos dedos.


- E a faca?

    • É para fazer o sinal da cruz.

- Trás a vela Adélia, Hilda fechou os olhos.

- É por amor que acalentas?

- Não. É por nada, é por viver. É porque sou.

No prado Hilda é cinzas, sopra o hálito de Deus.
- Vê Adélia, o passarinho!
- Vê Bruno, o grosso!
- Olha Hilda...

No prado, brotou o nenúfar.

18 maio 2011

Registro XXIX

Vai pela asa de inseto-fonte
o zumbido delicado
carne transparente
para teus olhos-raios-profundos,
a danação da promessa.

Uso lâmina afiada
nas bordas, no meio.
Pontas finas no centro do corpo –
funduras de inquietação.

O sangue tão translúcido
que esvoaça, evapora
faz-se nuvem
sobre violetas tenras,
sumarentas –
e o áspero-suave que roça
nos alcança o poema.

Registro XXVIII














Pensei cinamomos
que eu não sei,
dálias que eu vivi,
strelitzias que encontrei.
As flores que amo
ficam bem em qualquer
bocado de alumínio,
toalha de aquarela
e mesa sem prumo.
Qualquer tristeza eu dissipo
com pétalas laranja
e folhas verdíssimas.
Ah, pureza das coisas!

15 maio 2011

Registro XXVII

O silêncio é um grito.
O seu grito está
no fundo do abismo,
no vale profundo das coisas.

O amor é o silêncio.
O seu amor está
no que é sentido,
no que é cálido e morno,
no que é ardido.
Está também no frio,
na dor do silêncio,
na voz do amor intenso
sem ser dito.

Não digas que ama
sem antes amar o teu silêncio,
pois é dele que sai
o extrato da palavra
mais pura a ser dita.

A palavra pode ser
um silêncio.

14 maio 2011

Registro XXVI

O meu amor existe
para te completar Hilda,
nos prados inundados
de polpa e riso.
Em tua taça de ouro
carregas o meu vinhedo
e minhas oscilações
para beberes
o mar de nosso juízo.

O meu amor existe Hilda,
e o teu é para me libertar
mil vezes do vale de sombras,
do impreciso em mim.
Teus instrumentos sondam-me
o coração até os ossos
e a possibilidade de vir a ser
irmão, relicário,
enredo, capitão, signatário.
Viver então nos impregna
o instante que antecede
a origem:
o meu amor,
o teu amor,
juntos existindo.

Registro XXV

Fiquei perdido
olhando a mulher lavar
o que sobrou
de suas roupas
nas mesmas águas da enchente.
Era esfregar a carne exposta
na lâmina que fez o corte.
Era exaurir a morte
em sua própria lava
para, limpinha,
esperá-la novamente.
Era o retrato do perdão.
O corpo batido na pedra
até sair toda nódoa.
A  mulher saiu limpa
e eu atordoado,
sem saber onde esconder
minhas mágoas.

08 maio 2011

Registro XXIV

Ah Adélia,
eu não sou eu puro,
sou minha mãe murcha,
esgarçada nos ásperos da vida.
O eu-mãe perdido
no cordão do umbigo,
ô cordão da saudade!
Quantas coisas
ficaram desconexas:
dialogar com o sapato
é querer Deus por perto
e assumir pobreza e medo.
Se o mal está em querer compreender
o que faço é dar minha fala
para Ele.

03 maio 2011

Registro XXIII

Uma manhã de chuva
lava o jardim,
a poeira dos telhados,
os olhos de sono,
o ar ressentido.
A casa se enche
com o cheiro de terra,
jasmim e lembranças.

Duas manhãs de chuva
arqueiam as sobrancelhas,
envergam as paredes
e o que há de mofo
nas coisas de espera,
no tempo dos carros,
na vida esburacada,
o sangue faz-se lama.

Três manhãs de chuva
e eu oro pelo reboco,
a lágrima de cal frágil
e peço: segura-me
antes da casa ruir.
Eis que ao terceiro dia
de lamúrias celestes
eu me pego pensando:
Deus está triste e também chora.

Registro XXII

Ato um de vida prescrita:
o que fazes tu da tua?
Os rabiscos na janela,
traçam uma lua sorridente
que gesticula prata
em fundo azul cinzento,
cristalizado.
A contradição das cores sobrepostas,
o que me dizem?

Ato dois de alma tocada:
acredita! Através do desejo
podes precipitar a humanidade,
precipitar a ti mesmo.
A mim que largo minha táboa segura
de vida amena e lanço-me
onde mais me pareço encontrado
e sangrento, e sobreposto.
Queria agulhas finas e longas
para tocar a languidez
da bolha translúcida
que envolve os mistérios.
Pareço flutuar minhas bolhas,
careço coragem para atravessá-las
sem rompê-las.

Ato três de louco engolidor
do mundo (e frágil):
exercita a grande alma!
Também eu corro ao jardim e acaricio,
o que não vejo em meus olhos secos
e o que vejo com eles.
Retorno para casa com um milagre refeito.
Os milagres que fazemos, loucos por vida.
Aproximo-me da janeja e mesmo nas rachaduras,
nas entranhas da vidraça,
reconheço... reconheço... reconheço.