25 abril 2011

Registro XXI



















Preciso dizer sim
embora desconheça o modo
e aonde isso me levará.
Sim, por uma estrada esboçada
tingida de cores sobrepostas.

Sim, para o silêncio grandioso
que envolve o abismo
e ao mais profundo som original
que, ainda inaudível,
estremece o lume.

É necessário ser sim
para que vejamos o medo.
Sim ao medo!
Para que o enfrentemos
de que modo seja
e ele recue fraco, exaurido.

Sim para a margem do rio,
pelo fértil da lama
no fundo dele.
Pela vida que nos exaspera.

Pensei até em dizer,
sim ao vão dos ocos
e me entrego corado.
Não sei o que isso quer dizer,
vão dos ocos.
Mas tenho o exato tamanho
da sua força em mim –
o desconhecido!

22 abril 2011

Registro XX

Minha bisavó enxugou as mãos,
largou o pano ao lado da panela
e foi sentar.
Ficou bem quietinha na cadeira,
secando, secando.
Teve fome, não comeu.
Teve sede, resistiu,
prostrou-se na vida.
As rugas, a cabeça toda branquinha,
seu vestido de fundo preto
e flores miúdas,
a dentadura com um dente azul
contornado de ouro,
tudo na fogueira da dor universal,
sem sopro.
Ela toda parou para lamentar
a cruz e o homem nela.
Assim eu aprendi:
sexta-feira da paixão
é dia de ser nada.

21 abril 2011

Registro IXX

Ai de mim
por desencadear
o desencanto.
Será assim?
Tateando palavras
no limo-escuro-
charco-intumescência?

O que não entendo
da vida me assusta –
recuo-das-paredes-
de-dentro-para-o-de-dentro
-escuro-pastoso.
Há vidas que tento.
Ah flor! Toca a lama seca...

19 abril 2011

Registro XVIII






















Ais de ébrio
espaçado,
passo de astro
nauta na lua.
Capim santo,
erva cidreira
na atmosfera
do sonho.
Paz no estanho,
nas molas do precipício.
Depois passam.
Voltei a ver navios.

17 abril 2011

Registro XVII












O signo estanca
a boca em silêncio partido.
Faço cruzes
com o fulgor dos olhos.
Ensaio uma prece
de dentes que batem
contra a pedra sagrada.
Juro a pureza sonhada
em minha simplicidade rota,
poída.

Minha vontade é tosca,
o meu silêncio é bravo.
Vocifera lírios,
esbraveja afagos.
O signo me marca em fogo,
faço cruzes com o tremor dos dedos
que se desfazem rápidas
sobre a pressa entrecortada
dos dias.

Depois a navalha corta meus feixes,
as ramas guardadas para alívio.
Meu sangue coagula
e nesse estranho milagre
de vida parada que segue
a terra rompe
e o ar esfria em sinal de perdão.

16 abril 2011

Registro XVI





















Queria um poeminha
com gosto de Deus,
com jeito Dele,
assim,
infinitamente
amoroso.
É quando olho o mar,
mastigo a grandeza
E nunca acabo de louvar.

10 abril 2011

Registro XV

Aos poucos o mar se aproxima.
Seu sargaço, há tantos anos distante,
agora beira a minha ansiedade.
Seu cheiro, sua cor lodacenta,
as gavinhas moles,
feito aranhas gelatinosas,
já roçam meus medos.

Adiante um horizonte azul
limpinho
e corais preciosos
que abraçarão minha chegada.
Aos poucos a praça,
a gente curiosa, a mãe aflita,
suas varizes grossas
e sua circulação interrompida
novamente em fluxo.

Aos poucos o suor de cada dia,
metáforas,
sonhos discorridos,
sabores reencontrados.
Aos poucos poemas com sotaque,
retorno esperado.

09 abril 2011

Registro XIV

O que tenho de saudade
eu não alcanço.
Suspendo a barra da calça
e a onda molha.
Beijo de língua,
labareda salgada
aos pés de minha alma.
Numa tarde ficarei assim:
sol se pondo no rosto franzido
sem entender porque fui embora.

07 abril 2011

Registro XIII







Eita vago que não cabe no bolso,
na perna, na intenção!
Um tamanho que não alcanço
nem com pulo de atleta forte e viçoso.
Silêncio sujo de boi ruminando erva.
Diante dos meus olhos,
uma solidão se costura à paisagem
concreta da cidade.
É em mim que transpassa a agulha fina,
como em linho preso, amassado.
Pregas de estanho, bússolas desenganadas,
cacos de cor, vidro opaco na calçada.
Vitral de tudo o que tenho,
tudo o que vejo, tudo o que cheiro,
tudo o que bocejo.
Colcha de delírio molhado
de sexo a noite, mão solitária,
sono sem sonho.
Não consigo cheirar a fumaça
do cigarro ao lado.
Não consigo respirar limpo nos campos.
Onde meu lugar se encontra
nessa hora transtornada?
Eita que tristeza encalhada!

06 abril 2011

Registro XII




















– Eu vi montanhas, Caio. Vi nuvens e anjos.
   Eram uns prados verdes, pedras altas.
   Tocavam Deus aquelas durezas agudas, rugosas.

         •   E os anjos?

 – Eu vi uns rasteiros cobrindo as pedras.
   E eram asas de anjos.

         •   Anjos caídos?
– Não, anjos libertos. Homens com aquilo de serem
   mortais.

            Então, morreram os anjos?

– Disseram que era assim mesmo, que os anjos vivem
   um tempo com asas e tudo, são imortais.
   Prendem-se ao céu para purificarem os pecados
   e apurarem os desejos. Aos poucos perdem a leveza
   e as asas, não fazem mais sentido. Caem na terra
   e viram musgo de montanha, crisálidas rompidas
   nos pastos. Depois viram homens com aquilo
   de serem mortais e de terem, simultaneamente,
   um escuro e uma luz.

            Purificaram os desejos e apuraram os pecados... 
             Isso tira a leveza dos anjos?

– Não, isso dá peso e corpo, carne e sangue.
   Mas purifica-se os pecados e não os desejos.
   E os desejos também precisam ser renovados
   ou ficam velhos e perdem as asas.

             Não tem isso de ser mortal? 

– O desejo?

            Não, o pecado!

– É imortal e rasteiro. Cobre as montanhas
   e alimenta o desejo. Ah! Dá nome à lápide
   e impede que o mar avance.

            E os desejos transformam-se, assim como 
             os pecados dos anjos sem asas?

– Os homens com aquilo de serem luz e escuro queimam
   os olhos e as nuvens aquecem os pecados.

           E aquilo de ter um duro e um macio?

– É o mesmo da luz e do escuro. A luz fura o escuro.
   O duro fere o macio.

            Anjos têm grutas?

– Anjos ou os homens com aquilo de terem medo
   da morte? As grutas dos anjos, quando aparecem,
   são vistas a noite sobrepostas à escuridão.
   Elas rugem com o vento passando.
   Aqui já perderam as asas e trincam os dentes.
   Enroscam as pernas no vazio.

            Têm medo da morte?

– Depois que as grutas se acendem eles passam
   a temer a vida pois é a vida quem acaba com a morte.

            Mesmo ela sendo reluzente? E morte se acaba?

– Então não vês a montanha? Nem a nuvem?
   Nem o anjo com aquilo de existir sofrendo
   porque a vida acabou com a morte da crisálida
   nos prados? Ninguém morre - vira aquilo
   que seiva a terra. Nós vivemos eternamente
   porque nunca conseguimos morrer de verdade.

            Você viu a morte...

– Vi o amor dela. É terrível. O amor tem dentes
   agudíssimos.

            Morrer é ser mordido pelo amor de Deus?

– É ser mordido sim.

            E dói?

– O amor dói. A vida dói demais.

            Agora eu vejo aquilo em mim
             de não saber morrer.

– Perdestes a leveza. Olha tuas asas já forrando
   a montanha... Já é pôr do sol. Volto para casa.

            Vem comigo?

– Logo tua gruta aparecerá à boca da noite.

            Vem, quero trançar minhas pernas.

– Rangerás os dentes.

            Ficarei esperando alguma estrela pousar  
             lá dentro e iluminar o escuro.

– Eu explodirei dentro de ti.

            És a morte? O sopro que dói?           
             Aquilo de não querer saber?

– Depois passa. Ficará um grosso na singeleza
   da tua carne.

          E na tua?

– A tua pele grudada. Talvez uns rasteiros
   me cubram o peito.

        •   É onde te toco?

– É no ventre. Já é noite.
   Olha a gruta! Olha a boca! Olha o centro!
   Fecha os olhos....


Para Hilda Hilst e Caio Fernando Abreu

04 abril 2011

Registro XI

Amor válido
é o que tem
da boca para dentro
e nas costas do dia-a-dia
é asa,
recolhe caroço,
constrói um vitral no tempo
imprimindo paisagem
e dizendo:
é intenso.

Registro X


alameda. ou lápide. crisálida de ônix. viver codificado,
infravermelho de sono e cansaço. ao passo que tudo pedra.
avassala. fênix estrangeira. ah sarça...

03 abril 2011

Registro IX

Eu ouvi foi coisa que não conhecia.
Ai meu Deus, onde eu não estava
que perdi o rio levar figueira,
paca arrancando raiz,
limão enchendo o pé de alegria?
Dava a hora do lanche
e tinha aquele cheirinho de bolo
feito mais de amor do que de milho.
E podia-se olhar o horizonte,
imaginar o gigante que morava
nas montanhas
ou a casinha de uma tia velha
caiada de branco, cercada de mato
e cacarejo de galinha gorda.

Fui me trancar no quarto
e não saber do mundo lá fora,
com medo de ser o que eu era.
E o que eu era não saberia até hoje
ouvindo tanta história boa.
Então eu olho pro céu azulzinho
cheio de nuvem branca
e pergunto a Deus:
será que tem mais?

Registro VIII

Estou voltando
para o sal
com minhas artérias
todas alteradas.
Nenhum plano nas mangas
...atenua esse mistério.

Registro VII

Quando criança,
me confessei:
desobedeci minha mãe,
comi dois pratos de feijão.
Chamei nome feio –
...incongruência,
coco de galinha, alojamento ...
e tive uns pensamentos impuros
que escrevi no caderno
"não quero ir na missa
domingo de manhã!"

O Pai Nosso sorriu
e me mandou voltar
a brincar.

02 abril 2011

Registro VI

O que tinha o homem-poeta
na cavidade dos olhos?
Um visgo sem pouso?
Sapos brotando das asas gritando lagartos?
Valha-me Deus! Que dor profunda
de cheiros e sabores
das frutas que sequer conheço.

Ví dois pântanos.
Era tanta miudeza de coração de formiga,
de vaga-lume em chamas,
que me fez parar e ficar quieto o mundo.
Uma quietude buliçosa de ventre caído
e mil vezes elucidado de tanto parir.

Socorrei-me olhar de lótus,
de vitória amazônica e açaí cozido.
Dá-me fibra e caroço para que eu possa germinar.
Olhos de brisa-garça que pousam em mim,
sem saber de mim,
extrai o árido da boca das palavras que digo.
Põe nelas o estrume de vaca sagrada
e torna-me um inseto feliz, farto,
zumbindo Mozart, na hora de voar.

À Manoel de Barros

Registro V

Baobá azul em minha insônia,
seculares os olhos estendidos
nas pontas de teus dedos.
Vês o outro lado por mim,
do tempo que te deu essa esperança?
Se no porto de tuas raízes fundas
há remédio,
quem te vê, Baobá azul,
repensa a alma?

Eu, na gosma de teus sumos,
nutro de cascas o meu tronco espumoso.
Mesmo não sendo largo e profundo,
com a ponta dos olhos,
olhando o que vem vindo –
morrendo –
viverás ali molhado de séculos
e eu rasgado de segundos?

Baobá azul, na espera por musgos
escoa o teu tempo em minha lisura.
O cravo fincado no cheiro azul
de minha memória
germina por mim a tua semente.

Registro IV

Onde o meu pedaço
de terra é prado, Hilda,
e o meu presságio fagulha?
As rutilâncias do teu cortejo
minha dobradura,
carga, peso e árias de desassossego?

Onde minha noite
é clara, Adélia?
Sombra-ágata-lírica,
asa líquida,
aurora de redenção?

Caneco de azul pintado,
borda de leite

Agulha de prata?
E eu, solidão nas alturas,
Sou corda de fibra esticada
em cada mão.

Registro III

Vai pela asa de inseto-fonte,
zumbidos delicados,
carne transparente,
para teus olhos-raios-profundos
a danação da promessa.

Uso lâmina afiada nas bordas,
no meio. Pontas finas no centro do corpo -
funduras de inquietação.

O sangue tão translúcido esvoaça,
evapora-se e faz-se nuvem
sobre violetas tenras,
sumarentas.

O áspero-suave que roça
e nos alcança,
o poema.